Pedra preciosa na torre de marfim: a juventude negra quer viver

Por Natalia Vieira e Mariana Inglez

 

A estudante negra tem cabelos soltos, armados, entre crespos e cacheados, castanhos com luzes loiras, brincos de argola e sorri, sentada à frente de um mural com grafite colorido com predominância da cor lilás.

Decisiva para abrir as portas de acesso às universidades para estudantes negros, a implementação das ações afirmativas é uma conquista a ser amplamente celebrada. Jady Millan, 23 anos, é um rosto sorridente e querido, dona de uma voz tranquila, firme e segura de viver o presente do qual faz parte: a geração de ingressantes na USP como um reflexo de uma luta histórica pela inclusão.

Mulher preta, moradora de Sapopemba, periferia da Zona Leste de São Paulo, Jady é estudante de graduação do curso de Ciências Biológicas, turma de 2020. Comunicativa, espontânea e participativa, a sua ligação com a Biologia é também uma trajetória de ancestralidade: seu avô é residente de uma região litorânea, o que fez com que sua família sempre estivesse conectada ao mar e que a manifestação das diferentes formas de vida se fizesse presente em seu imaginário desde a infância.

A trajetória educacional da Jady dialoga com a realidade vivenciada por muitos estudantes negros. A ausência de pessoas negras como referências profissionais, as dificuldades enfrentadas enquanto uma estudante de escola pública durante o ensino básico e, depois, o sentimento de não-pertencimento que acompanha o caminho das pessoas negras que acessam lugares historicamente embranquecidos, como as universidades.

Hoje, a estudante relembra com orgulho o caminho percorrido até aqui, a concretização de um objetivo que nasceu ainda no Ensino Médio, alimentado por um ambiente escolar potente para engajar e potencializar a possibilidade do sonho. A nossa capacidade de sonhar, de projetar, é também uma ferramenta poderosa de afrofuturo, e os novos sonhos de Jady incluem trabalhar com conservação da biodiversidade e Educação Ambiental voltada às realidades das escolas públicas.

A temática ambiental, inclusive, está presente na formação atual da estudante. Jady participa de um laboratório que estuda as mudanças climáticas globais atreladas às potencialidades da Educação Ambiental. Desde sua entrada na graduação, Jady reconhece que as questões raciais são o fundamento de todas as discussões em uma sociedade estruturalmente racista. O racismo ambiental, por exemplo, sentencia pessoas negras às condições mais precárias e vulneráveis aos impactos causados pela degradação ambiental.

Na perspectiva da estudante, raça e meio ambiente são indissociáveis e as vivências das pessoas negras podem contribuir para o amadurecimento da discussão e para elaboração de políticas públicas mais efetivas:“Faz diferença ter mais pessoas pretas na Biologia e nas áreas ambientais, porque elas conseguem ter visões mais amplas sobre a questão e sobre a sociedade, a partir de um olhar mais empático de quem viveu na pele os efeitos das desigualdades que afetam a população negra, inclusive no que se refere às relações com o meio ambiente”

O sentimento de empatia também está presente em suas reflexões sobre a necessidade e a urgência da ampliação das ações afirmativas enquanto um projeto de inclusão social de pessoas historicamente negligenciadas. A estudante enfatiza que tais ações contribuem também no campo simbólico do sentimento de pertencimento, reconhecimento e construção de identidade, o que se faz fundamental para combater a solidão que muitas vezes se manifesta em espaços onde as pessoas negras não estão representadas e que inclusive, afeta o desempenho dessas pessoas em ambientes sem seus pares: “Pra mim, as políticas públicas são importantes justamente por causa de acolhimento, pra sentir mais pertencente ao lugar (...) Quando eu entrei (na USP), já existiam (políticas afirmativas), então eu não tive que sofrer tanto quanto as pessoas que já estavam aqui antes (...) Já pude ser acolhida por outras pessoas negras.”

Para afastar a solidão, Jady conta com a presença de amizades que compartilham suas vivências e a sua realidade. O “aquilombamento”, a construção da comunidade afrocentrada, nos mostra como potencializar as nossas existências e nos fortalecer frente às dificuldades do caminho. Sobre seu processo de fortalecimento, Jady destaca a importância das redes de afeto e de apoio: “Ter alguém com quem a gente possa conversar. Não só sobre as dificuldades, mas sobre as questões afetivas que são diferentes pra gente, questões familiares… São pessoas com quem você se identifica mais e não se sente tão sozinho.”

Jady é uma potência e nos lembra que nessa vida não caminhamos só. Os nossos passos são antigos, vêm de longe, frutos de um legado da luta travada pelos movimentos negros que pavimentaram nossa estrada até aqui. E como não poderia deixar de ser, Jady além de olhar pra sua formação em Ciências Biológicas, já faz parte do Coletivo Bitita (Coletivo Negro do IBUSP) e de outros movimentos que visam garantir cada vez mais inclusão de pessoas negras na jornada acadêmica.

 

Para saber mais:

Jady indica conferir o perfil do produtor de conteúdo e estudante da Universidade de São Paulo conhecido como “Chavoso da USP”, no Youtube e Instagram. Vale ainda assistir ao documentário “AmarElo: é tudo pra ontem” de Emicida (disponível na Netflix) e escutar sua canção favorita: “Ismália” (Emicida, disco “AmarElo”).

Nesse dia, as autoras indicam o livro de poemas “Tudo nela é de se amar”, da autora Luciene Nascimento com ilustrações da artista Mariana Sguilla e o livro “Cartas para minha avó”, de Djamila Ribeiro. Duas leituras sensíveis para fechar esse ciclo de entrevistas com afeto.

 

 

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