Um otimista atento: “quem nasceu pra malandragem pode ser doutor”
Por Natalia Vieira e Mariana Inglez
Os versos do multiartista Emicida flutuam no ar ao longo da entrevista: “com a fúria da beleza do sol, você vai atrás desse diploma”. Esse poderia ter sido o verso inspirado na trajetória de Lucas Nascimento, 34 anos, mais conhecido como Taio. Homem negro, cientista, capoeira, poeta, que nos lembra a importância da resiliência e a força motivadora dos sonhos.
Antigo residente da região de Embu-Guaçu, extremo da Zona Sul da Grande São Paulo, Taio ingressou como estudante na Universidade de São Paulo em 2011. Mas a caminhada que o trouxe até aqui, hoje no doutorado, começou muito antes, quando, aos 14 anos, nasceu o seu primeiro grande sonho, trabalhar como carteiro nos Correios: “Meu sonho era ser carteiro, mas eu sempre fui apaixonado pela vida. Sempre me fascinei. Eu fazia gaiola, meu primeiro trampo, mas eu me fazia esquecer pra que elas eram feitas. Eu sempre odiei passarinho na gaiola, mas era o que eu tinha pra ajudar em casa”.
O sonho de estudar na USP nasceu após uma conversa inesperada com uma desconhecida dentro do ônibus, com uma camiseta de cursinho, e que compartilhou sua vontade de entrar em uma universidade, apresentando a possibilidade de experienciar uma outra realidade até então desconhecida por ele. Com essa nova inquietação, Taio enfrentou quatro anos de cursinho, inúmeros deslocamentos e outras privações, até o dia em que, finalmente, se fez ponte entre a sua comunidade e a Universidade. Do fascínio com a primeira aula de microscopia aos episódios de violências racistas, Taio fortaleceu sua identidade e fez as pazes com a sua origem, reconhecendo as suas contribuições: “Essa vontade (de agradar a todos) vinha de um pensamento de “não mereço estar aqui”, porque é isso que ficam introjetando na nossa mente. Mas não, mano, eu mereço estar aqui e eu agrego muito.”.
Armado de livros, caneta e Capoeira, o pesquisador se blindou para encarar a maquinaria racista do ambiente acadêmico e fazer seus sonhos germinarem em terreno hostil: ”A gente vê que a gente é deslocado, que a gente é diferente, mas a gente fecha os olhos pra isso (...) Eu tinha uma ânsia de querer fazer parte, de querer ser aceito quando eu entrei.” Ao longo dos anos, Taio acompanhou as mudanças na USP que aconteceram a passos lentos, até a grande virada com a implementação das reservas de vagas via SISU, em 2017, e via FUVEST, em 2018.
A outra grande mudança veio em 2021 com a adoção das ações afirmativas no Programa de Pós Graduação em Ecologia-USP, garantindo a reserva de vagas em 50% para pessoas autodeclaradas negras (pretas ou pardas) e indígenas, além das vagas supranumerárias para pessoas trans e travestis, pessoas com deficiências e pessoas oriundas de comunidades tradicionais. Atualmente, o Programa da Ecologia conta também com a Comissão Permanente de Acompanhamento das Ações Afirmativas (CoPAF), que zela pela efetividade das ações e pelo acolhimento dos estudantes dentro do Programa.
No processo de implementação das ações afirmativas, Taio participou ativamente da luta, sendo uma das vozes de mobilização e chamada à responsabilidade de seus pares no Departamento de Ecologia. “Eu fico muito orgulhoso de ver toda essa construção e essa mudança no espaço, desde quando o professor me chamou de nóia em um encontro pelos corredores, e de quando eu me deparei com um vídeo em inglês sem saber nada na primeira semana de aula, até semana passada quando eu encontrei um aluno negro, novo do Programa (de pós-graduação), que só prestou a prova porque se sentiu confiante por causa da política afirmativa.”
Contrariando todas as estatísticas que sentenciam jovens negros, Taio é mestre em Ecologia e agora caminha para a conclusão do doutorado e para a sua primeira experiência internacional. Na bagagem, ele carrega seus pilares pessoais e duas referências de mulheres negras que são decisivas para seu processo de fortalecimento e auto-conhecimento: Maytê Amarante, a melhor amiga, e Lili Nascimento, sua irmã. Além disso, Taio também destaca a importância de seu orientador, o Professor Paulo Guimarães, conhecido como Miúdo, na construção da sua identidade enquanto pesquisador.
A curiosidade do pesquisador e a habilidade de formular perguntas já estavam presentes na vida de Taio desde muito antes da USP ser um horizonte de possibilidades. Ainda criança, Taio já admirava a organização e a dinâmica das formigas, e relembra com carinho o primeiro nome da planta que aprendeu, a “Maria Pretinha”, que tinha o mesmo nome de sua mãe. É assim, com a simplicidade do olhar sempre atento à vida, que ele construiu seu projeto de mestrado, estudando a evolução dos frutos e de espinhos em palmeiras neotropicais.
No projeto de doutorado, a pesquisa é voltada a entender a evolução da coloração de aves frugívoras, ou seja, como a dieta das aves influencia em sua coloração. Como planos de futuro na carreira de pesquisador, ele já adianta seu interesse em olhar as relações entre o ambiente urbano e sua influência na coloração das aves, partindo do ponto de vista que há muita vida nas cidades, que poderia funcionar como um verdadeiro filtro ambiental.
Além de pesquisar e buscar entender padrões evolutivos, Taio é poeta. E é com a poesia que ele busca aliviar o peso dos atravessamentos dos olhares alheios, dos preconceitos e das engrenagens do racismo estrutural. Que os seus versos, “quem nasceu pra malandragem pode ser doutor”, sigam inspirando gerações de jovens negros que sonham em construir pontes em terrenos adversos.
Fica o convite para que assistam à entrevista completa aqui, e ouçam os versos de Taio, disponíveis aqui.
Para saber mais:
Taio indica escutar o podcast “Az Ideias Podcast”(disponível no Spotify), conteúdo produzido por Big da Godoy (@bigdagodoy) e Boy Killa (@boykilla_). E o livro “Racismo estrutural”, do professor, advogado e escritor Silvio Almeida (@silviolual).
Hoje, as autoras indicam o livro “Uma ecologia decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho”, de Malcom Ferdinand, com prefácio de Angela Davis e ganhador do Prêmio da Fondation de l’Ecologie Politique de 2019, para novas formas de olhar para o meio ambiente e ecologia e o livro “Conversas desconfortáveis com um homem negro”, do autor Emmanuel Acho.




